Quinta-feira, 28 de Julho de 2011

Fala Também Tu

Fala também tu,

fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala —
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.
Paul Celan, in "De Limiar em Limiar"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno  


enviada por antonio01 às 20:37
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Domingo, 24 de Julho de 2011

Os Anos de Ti para Mim

O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos
                                                             teus olhos
pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o
                                                             outono.
Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem
                                                             um terceiro:
sorvemos um último vazio.

Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais
                                                             depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.
Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno


enviada por antonio01 às 19:28
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Sábado, 16 de Julho de 2011

Elogio da Distância

Na fonte dos teus olhos

vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno


enviada por antonio01 às 17:22
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Segunda-feira, 11 de Julho de 2011

O Companheiro de Viagem

A alma da tua mãe flutua adiante.
A alma da tua mãe ajuda a noite a navegar, escolho após escolho.
A alma da tua mãe fustiga os tubarões à tua frente.

Esta palavra é a disciplina da tua mãe.
A discípula da tua mãe partilha o teu jazigo, pedra a pedra.
A discípula da tua mãe inclina-se para a migalha de luz.

Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno


enviada por antonio01 às 17:58
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Sexta-feira, 8 de Julho de 2011

Olhos

Olhos:

brilhantes da chuva que caiu
quando Deus me mandou beber.

Olhos:
ouro, que a noite me contou nas mãos,
quando colhi urtigas
e fiz arrepender as sombras dos Provérbios.

Olhos:
noite, que sobre mim resplandeceu, quando escancarei o portão
e atravessado pelo gelo invernoso das minhas fontes
saltei pelos lugares da eternidade.
Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

 


enviada por antonio01 às 18:47
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Sábado, 2 de Julho de 2011

Coração Inconstante

Coração inconstante, a quem a charneca edifica a cidade

no meio das velas e das horas,
tu sobes
com os choupos até aos lagos:
aí talha a flauta, de noite,
o amigo do seu silêncio
e mostra-o às águas.
Na margem
vagueia embuçado o pensamento e escuta:
pois nada
surge com a sua própria forma,
e a palavra, que brilha sobre ti,
crê no escaravelho dentro do feto.
Paul Celan, in "Papoila e Memória"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno


enviada por antonio01 às 18:01
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