Uma vez encontrámo-nos os dois
Nesse mar da política; depois,
Como diversa bússola nos guia,
Cada qual foi seu rumo: todavia,
Em certas almas nunca se oblitera
A afeição de um companheiro antigo:
Sou para vós por certo o que então era;
E eu, como então na minha primavera,
Abraço o venerando e velho amigo!
João de Deus, in 'Campo de Flores'
Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a dôce
E bella imagem tua, que eu quizera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!
Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeleveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...
João de Deus, in 'Ramo de Flores'
Olhas-me tu
Constantemente:
D'ahi concluo
Que essa alma sente!...
Que ama, não zomba,
Como é vulgar;
Que é uma pomba
Que busca o par!...
Pois ouve; eu gemo
De te não vêr!
E em vendo, tremo
Mas de prazer!...
Foge-me a vista...
Falta-me o ar...
Vê quanto dista
D'aqui a amar!
João de Deus, in 'Ramo de Flores'
Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham n'alma objectos
Que os possam entreter;
Meus olhos... coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente pára
Em encontrando o mar!?
E penso n'isto, scismo...
Mas é tão natural
Cahir-se no abysmo
D'uma belleza tal!...
Olhei!... Foi indiscreta
A vista que te puz.
A pobre borboleta
Viu luz... cahiu na luz!
Uma attracção mais forte
Que toda a reflexão,
(É fado, é sina, é sorte!)
Me arrasta o coração...
João de Deus, in 'Ramo de Flores'
Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.
Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego...
E vão caminho do mar.
A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.
Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.
Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.
Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.
A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.
Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.
A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;
Mas a nuvem da desgraça
Já de mim se não separa.
Eu bem sei qual é a tinta
Que dás às faces mimosas;
E o carmim com que pinta
Deus nosso Senhor as rosas.
Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.
Nunca os beijos que te dei
Me venham ao pensamento...
Correi lágrimas, correi
Para o mar do sofrimento.
Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.
Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com jóias de tal valia
Não há fiar em ninguém.
Na alma já não me assoma
Aquela antiga visão;
A rosa perdeu o aroma
A luz perdeu o clarão.
João de Deus, in 'Campo de Flores'
Amo-te, flor! Se te amo, Deus que o sabe
Que o diga a teus irmãos, que o Céu povoam
E ébrios de glória cânticos entoam
A quem no mar, na Terra e Céus não cabe.
Se te amo, flor! que o diga o mar que expele
Quanto é domínio, e beija humilde a praia...
Se mal que a Lua lá das ondas saia
Nas rochas me não vê gemer com ele!
Amo-te, flor! Se te amo, o Sol que o diga:
Quando lá da montanha aos Céus se eleva,
Se entre os vermes do pó, que o vento leva,
Me banha a mim também na luz amiga.
Se te amo, flor? Sem ti... que noite escura,
Meu céu, meu campo em flor, meu dia e tudo!
Diga-te a noite minha se te iludo,
Se em vida já sem ti sonhei ventura!
O anjo que no berço humilde e escasso
Do Céu me veio alumiar piedoso
E em lágrimas e riso, pranto e gozo,
Desde então me acompanha passo a passo;
És tu! Amo-te e muito! O que flutua
Na fornalha que o sopro eterno acende,
Não beija a mão do anjo que o suspende
Com mais amor que eu beijo a sombra tua!
João de Deus, in 'Campo de Flores'