O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —
o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.
Casimiro de Brito, in "Canto Adolescente"
Temos lábios tenros para o amor
dentes afiados para a morte
Concebemos filhos para o amor
para a guerra os mandamos para a morte
Levantamos casas para o amor
cidades bombardeamos para a morte
Plantamos a seara para o amor
racionamos o trigo para a morte
Florimos atalhos para o amor
rasgamos fronteiras para a morte
Escrevemos poemas para o amor
lavramos escrituras para a morte
O amor e a morte
somos
Casimiro de Brito, in "Telegramas"
Entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. A morte
não é morte da vida.
A morte não é inação, inutilidade.
A morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura
prolongada
desde o porão do tempo. Projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.
A morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. Nova
utilidade. Outro papel a desempenhar
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
Nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.
Casimiro de Brito, in "Solidão Imperfeita"
Peço a paz
e o silêncio
A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento
Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão
Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte
A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol
Peço a paz e o
silêncio
Casimiro de Brito, in "Jardins de Guerra"
Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.
Casimiro de Brito, in "Solidão Imperfeita"
Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —
Casimiro de Brito, in "Negação da Morte"
Entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. A morte
não é morte da vida.
A morte não é inação, inutilidade.
A morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura
prolongada
desde o porão do tempo. Projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.
A morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. Nova
utilidade. Outro papel a desempenhar
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
Nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.
Casimiro de Brito, in "Solidão Imperfeita"
Crime quem falou em crime
somos todos irmãos todos a mesma
carne incendiada
Quando houver um crime
o primeiro
todos seremos criminosos
Agora porém somos vivos e amamos
do nascimento à morte
Crime se o há já nos corria nas veias
quando éramos obscuros como o ventre
que nos concebeu
Não há veias que transbordem
neste corpo flexível
que nos eterniza
Casimiro de Brito, in "Telegramas"
Escrevo para sentir nas veias
o voo da pedra.
Antecipação da paz
neste país de granadas
moldadas
no silêncio dos frutos.
Escrevo como quem escava
no bojo da sombra
um mar de claridade.
Pedras vivas de possibilidade
as palavras levantam
o crime, os pássaros do pântano
Escrevo
no grande espaço obscuro
que somos e nos inunda.
Casimiro de Brito, in "Jardins de Guerra"