Bemdito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!
Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dôr,
Estremecendo, acórda...
A minha dôr é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.
Canto e chóro amargamente;
Mas a dôr, indiferente,
Continúa...
Então,
Febríl, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
- E a minha dôr adormece,
E o leão é socegado.
Quanto mais bêbo mais dórme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!
E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!
Grande vida!
- Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!
António Botto, in 'Canções'
Eu hontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Fallou-me do seu destino,
Do seu fado...
Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhádo e lindo.
O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!
Deserto de aguas sem fim.
Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...
Elle afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...
Ao longe o Sol na agonia
De rôxo as aguas tingia.
«Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»
. . . . . . . . . . . . . . . .
E os poetas a cantar
São echos da voz do mar!
António Botto, in 'Canções'
A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até sonhei que morria.
E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas, velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu... devagar morrendo.
O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de lucto.
Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;
Beijámo-nos doidamente...
- Era dia!
E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram... e assim ficaram!...
António Botto, in 'Canções'
Bemdito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!
Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dôr,
Estremecendo, acórda...
A minha dôr é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.
Canto e chóro amargamente;
Mas a dôr, indiferente,
Continúa...
Então,
Febríl, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
- E a minha dôr adormece,
E o leão é socegado.
Quanto mais bêbo mais dórme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!
E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!
Grande vida!
- Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!
António Botto, in 'Canções'
Andáva a lua nos céus
Com o seu bando de estrellas.
Na minha alcova,
Ardiam vellas,
Em candelabros de bronze.
Pelo chão, em desalinho,
Os velludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho.
Elle olhava-me scismado;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a lua branca e núa
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delirio
Procurou ávidamente,
E ávidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para Elle,
E, encostado ao meu hombro,
Fallou-me d'um pagem loiro
Que morrêra de Saudade,
Á beira-mar, a cantar...
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombría.
Déram-se as bocas n'um beijo,
- Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento.
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecêra cansado
E que eu beijára loucamente
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente,
Bebia vinho... até cahir.
António Botto, in 'Canções'
Carne morêna, toda perfume?
Por que te cálas,
Por que esmoreces
Boca vermêlha, - rosa de lume!
Se a luz do dia
Te cóbre de pêjo,
Esperemos a noite presos n'um beijo.
Dá-me o infinito goso
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O arôma e o calôr
Da tua carne, - meu amôr!
E ouve, mancebo aládo,
Não entristeças, não penses,
- Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem peccado...
Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;
Tenho Saudades da vida!
Tenho sêde dos teus beijos!
António Botto, in 'Canções'
Tenho a certeza
De que entre nós tudo acabou.
Deixal-o!
Bemdita seja a tristesa!
- Não ha bem que sempre dure
E o meu bem pouco durou.
Não levantes os teus braços,
Para de novo cingir
A minha carne de seda;
- Vou deixar-te... vou partir.
E se um dia te lembrares,
Dos meus olhos côr de bronze
E do meu corpo franzino,
Acalma
A tua sensualidade,
Bebendo vinho e cantando
Os versos que te mandei
N'aquella tarde cinzenta...
Adeus!
Quem fica soffre bem sei;
Mas soffre mais quem se ausenta!...
António Botto, in 'Canções'
Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.
Andam pétalas e fôlhas
Bailando no ár sombrío;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.
Em tudo vejo Saudades!
A terra parece mórta.
- Ó vento que tudo lévas,
Não venhas á minha pórta!
E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim cahidas,
Restos de um grande festim!
Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licôr!
- Que importa morrer amando,
Que importa morrer d'amôr!
E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
- Morro mas levo commigo
Alguma cousa de ti.
António Botto, in 'Canções'
Por uma noite de outomno
Lá n'essa nave sombría,
Hei-de contigo deitar-me,
Mulher branca e muda e fria!
Hei-de possuir na morte
O teu corpo de marfim,
Mulher que nunca me olhaste,
Que nunca pensaste em mim...
E quando, no fim do mundo,
A trombêta, além, se ouvir,
Apertar-te-hei mais ainda,
- Não te deixarei partir!
A tua boca formosa
Será sempre dos meus beijos;
E o teu corpo a minha patria,
A patria dos meus desejos.
António Botto, in 'Canções'
Ouve, meu anjo:
Se eu beijásse a tua pél?
Se eu beijásse a tua boca
Onde a saliva é um mél?...
Quiz afastar-se mostrando
Um sorriso desdenhoso;
Mas ai!
- A carne do assassino
É como a do virtuoso.
N'uma attitude elegante,
Mysteriosa, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febríl.
Na vidraça da janella,
A chuva, léve, tinia...
Elle apertou-me, cerrando
Os olhos para sonhar...
E eu, lentamente, morria
Como um perfume no ar!
António Botto, in 'Canções'
Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, n'este mundo de enganos,
Falla verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado commigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.
António Botto, in 'Canções'